CARTA MUITO ANTIGA A UM AMIGO URGENTE
Maria João Brito de Sousa
Curto muito a minha “panca”, meu caro. Assumo-a e jamais me demitirei dela.
(merda! Entornei o garoto e deixei cair a palhinha…)
Neste vigésimo terceiro dia do mês da Loucura da Era do Ovo, gostaria de dizer-te – e dir-to-ei! – que apenas me sinto grata e que, para mim, a gratidão é um sentimento, no mínimo, deplorável.
Dir-te-ei, também, que estou desiludida… mas, disso não tens tu culpa… estou, muito provavelmente, desiludida comigo mesma.
És apenas um homem e, na verdade, nunca me pediste as asas que, amorosa e estupidamente, fui tecendo para ti.
Homem, esta minha “panca” – não tenciono demitir-me dela, repito! – queria, de mim, que tu voasses… que queres? Eu bem te tinha avisado…
E queria mais, esta minha assumidíssima imitação de loucura! Queria que fosses o irmão que nunca tive, o menino que partiu, o poeta que não és… e talvez (?) te quisesse a ti também… sempre no pretérito mais-que-perfeito do verbo impossível, imagina!
Não te preocupes. Não enlouqueci de vez. É que esta lucidez indigesta e excessiva andava a fazer-me mal e o meu avô escrevia-me de “anjos que têm olhos fundos como espelhos, olhos de ver através das almas”. Nem penses em culpar-me da inocência de ser como sou. Aceita-me apenas e nunca me rotules porque, às papoilas, ninguém pode fazê-lo. Verdade, verdadinha; a elas, de magoadas, caem-lhes as pétalas todas e os senhores doutores, esses, ficam desconcertados…
Post Scriptum – Perdoa-me. Sinto que foste injustiçado… é que, um destes dias, ao entrar no teu gabinete, – tinha-me, decerto, esquecido de pôr os óculos cor-de-rosa… - pareceu-me ver em ti um homem. Um homem, assim, igualzinho a todos os outros, capaz dos mesmos erros, passível dos mesmíssimos defeitos…
O caminho para aí ERA sempre igualzinho à interminável Estrada de Tijolos Amarelos e eu tinha feito de ti o meu feiticeiro de Oz do Antes-da-Gravidade-e-Tudo-o-Mais…
Soubeste-me, vagamente, às milenares reminiscências dos anjos da guarda… imaginei-te protecção, porto sereno, fortaleza e armadura… apesar das limitações burocráticas e da inevitabilidade das taxas moderadoras.
Maria João Brito de Sousa – 23.05.1993 – 21.20h