ENREDOS
Maria João Brito de Sousa
Reparei nela assim que entrou na sala de espera. Foi o som que primeiro me chamou a atenção, o estalar ritmado e seguro de saltos altos na cerâmica que cobria o chão. Ainda hoje, quando penso nisso, não consigo perceber como a ouvi chegar. O meu olhar colado à porta do consultório parecia ter monopolizado os outros sentidos e ouvir fosse o que fosse que viesse de outro ponto da sala, seria muito improvável. No entanto ouvi-a e o som tornou-se suficientemente intrigante para me fazer desviar olhos e atenção, rodar o tronco no sentido oposto e deixar-me afundar num arrepio de pânico quando confirmei a suspeita levantada, algures no meu cérebro, pelo familiar tic-toc dos passos da minha mãe. Estava ali, a alguns metros de mim, debruçada sobre o balcão de atendimento, interrogando com a sua proverbial segurança a empregada de serviço. Como me irritava e simultaneamente assustava aquela inabalável segurança de quem sabe exactamente o que faz e porque o faz!
Um suor frio cobriu-me o rosto e, por instantes, senti uma imensa urgência de fuga. Talvez conseguisse passar sem que ela me visse, chegar ao patamar, entrar no elevador e desaparecer de uma vez por todas… mas não. Os olhos dela, serenos, severos, estavam já pousados sobre mim e ela percorria – tic-toc – os poucos passos que ainda nos separavam.
Parou exactamente à minha frente antes de me dar tempo de esboçar um gesto de fuga.
- Vem comigo até à varanda, Marta., solicitou ignorando a minha lividez e o tremor das minhas mãos que uma providencial revista anónima não conseguia disfarçar. De novo me assaltou a ideia de fuga, mas já a mão dela segurava a minha e o meu corpo obedecia automaticamente à sua esmagadora determinação.
Lá fora, a tarde arrefecia como se quisesse justificar o gelo que parecia ter tomado conta de mim e o trânsito, na rua, parecia tão caótico quanto as batidas do meu coração. Ela, severa, serena, segura – tão absurdamente segura! - acendia um cigarro sem esboçar um sorriso.
- E agora, Marta, vais dizer-me o que estás a fazer num consultório de ginecologia e obstetrícia, ou vais deixar que eu adivinhe?, atirou depois de soprar a primeira espiral de fumo branco.
- Como soubeste que eu estava aqui?
- Puro acaso, Marta… e não me agrada que tenha sido assim. Ia a sair da pastelaria quando te vi deste lado da rua. Chamei-te e não me ouviste. Pensei chamar-te de novo, mas tu já lias a placa junto à porta do consultório e resolvi não te dar a hipótese de mentires… mais uma vez.
Maria João Brito de Sousa
“Enredado”para http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/
NOTA - A peça inicial, sublinhada, é da inteira responsabilidade e autoria da Fábrica. O meu trabalho só se inicia a partir da última palavra em destaque.