ONTEM e GENTE DA MINHA TERRA, NA FONTE
Maria João Brito de Sousa
"ONTEM,
Ontem "pintei a manta"!
Ontem pintei o mar de vermelho e, ao céu, povoei-o das estrelas do meu imaginário... depois, deixei-me pintar pelas cores que, anteontem, nem poderia conceber.
Ontem deixei que os mal-conhecidos me pintassem, me rabiscassem, me escrevessem e grafitassem segundo as suas próprias cores.
Ontem fui outra dentro de mim mesma e fui a que se pintou na outra, dentro de si.
Ontem deixei que os carros se transformassem em caravelas que navegavam serenamente em direcção à ilha de Samoa. Essa, a da grande guerra, a do grito de batalha, onde, ontem, só viviam milenares tartarugas e esplêndidas gaivotas que lembravam "o coração do meu povo" percorrendo, de punho erguido, as recém-conquistadas ruas da Lisboa de Abril.
Ontem os homens, erguidos do barro inicial de todas as coisas, eram, comigo, irmãos entre si. Ontem, desenganei-me, chorei e, depois, ri-me de ter chorado.
Ontem, magoei-me e vinguei-me... sem rancores. Fui menina, rainha, serva, loba e mulher.
Ontem fui trágica. Ontem fui mágica. Ontem fiz malabarismos com granadas defensivas e harakiri com um punhal inventado. Chorei sem lágrimas, cantei sem voz, gritei em silêncio.
Ontem, porém, já sabia que também isto passaria."
Maria João Brito de Sousa
Transcrição de um texto manuscrito que escrevinhei, em visível "desabafo", no primeiro dia do segundo mês do ano de 1993.
Ilustração - Gouache sobre papel almaço - "Gente da minha terra, na fonte" - Trabalho datado do segundo ano do ciclo preparatório - Maria João Brito de Sousa, nº 24, 2º H - 1963/4