UMA CRÓNICA ESCRITA "A" E PUBLICADA "COM" SANGUE FRIO
Maria João Brito de Sousa
Pergunta ao sopro do vento
Quanto tempo o tempo tem,
Nunca o perguntes ao tempo
Que não diz nada a ninguém…
8.25h
Às oito e vinte e cinco calco, sob a sola do sapato direito, a ponta do que julgo ser o último cigarro daquela manhã que ainda não pressinto ser de surpresas.
Muitos alunos de Medicina, lado a lado com os seis cidadãos a quem foram marcadas intervenções cirúrgicas para este dia, no bloco de pequena cirurgia deste hospital da nossa Lisboa.
Ficam em branco as peripécias da curta ascensão ao bloco e das duas horas de espera que separam a minha chegada do momento em que uma simpática auxiliar faz ouvir o meu nome. Entro convencida de que em menos de um quarto de hora estarei despachada…
10.30h
A cena que eu tinha imaginado – muito semelhante aos curtos episódios de drenagem que puderam ser prestados no centro de saúde – está, pelos vistos, muito longe da realidade pois sou encaminhada para um gabinete onde me entregam um uniforme azul que terei de vestir antes de me ser permitida a entrada na sala de cirurgia. Nisto, uma vez que estou mais empenada do que uma porta de pinho de terceira qualidade, se gastam quase por inteiro, os tais quinze minutos que a contabilidade do meu economista-subliminar-interno tinha disponibilizado para a totalidade do acto cirúrgico e começo a “torcer o nariz”, na perspectiva de uma longa, longa manhã num espaço que nada tem de convidativo, por maior que seja a simpatia da auxiliar que, agora, muito pertinentemente alheia aos meus gostos e desgostos, me tenta convencer a ler uma revista “de que toda a gente gosta”…
- Não gosta??? Ahhhh, temos aqui mais… nem das espanholas? Perante a minha – se possível… - ainda mais visível expressão de desagrado, faz uma derradeira tentativa; e se forem as fofocas da princesa?
Não sei, nem quero saber, de que raio de princesa fala mas, consciente da sua boa vontade, não consigo zangar-me e acabo por pegar num dos exemplares que me estende. Folheio. Descubro – depois de fazer mil e uma involuntárias caretas – uma fotografia de uma actriz cujo trabalho me agrada e lá me decido a ler o artigo.
11.00h
Detesto as minhas viagens ao hospital. Detesto-as a todas, sem excepção, e estou segura de detestar ainda mais o facto de ter de me confrontar com sistemas informáticos que se “esquecem” de associar, num receituário, o nome de um doente ao código de um despacho que lhe confere gratuitidade medicamentosa ou que, quando os associam, prescrevem formatos de embalagens que as farmácias não têm e os laboratórios nem sequer disponibilizam. Detesto quase tudo o que se prende com essas viagens mas poucas vezes me senti tão desconfortável como no momento em que aqui encontro, obscenamente impressa - e repetida, a provar que se não trata de mero erro tipográfico! -, a frase; “À” muito tempo que…
(continua)
(final) – 00.30h
Adiante. Fujo à tentação de me pôr a discorrer sobre aquele que me parece ser o resultado de uma revista, lida por tantos, tantos milhares de portugueses, se esquecer - à semelhança do sistema informático do Serviço Nacional de Saúde no que respeita aos despachos de gratuitidade - de contratar revisores de texto, e passo a narrar o resto da minha pequena cirurgia que, de repente, me começa a parecer pequena demais…
mesmo muito pequena…
cada vez mais pequena e pessoal…
pequeníssima! Tão pessoalzinha e insignificante que dou comigo a perguntar-me - agora, não quando a comecei a escrever! – que raio de fraqueza me teria a anestesia provocado para que uma pequena cirurgia me ofuscasse ao ponto de me fazer acreditar que poderia merecer-me uma crónica…
Maria João Brito de Sousa – 10/11.04.2014