ONTEM
Maria João Brito de Sousa
Ontem “pintei a manta”!
Ontem pintei o mar de cor- de- laranja. Ontem deixei-me pintar de cores que anteontem não poderia conceber. Ontem deixei que os mal-conhecidos me pintassem, me escrevessem, me grafitassem. Ontem fui outra dentro de mim própria… ou fui eu própria quem, dentro de mim, se pintou noutra?
Ontem os carros transformaram-se em gigantescas caravelas de pau-rosa, navegando, serenamente em direcção à ilha de Samoa. A da guerra. A do grito de batalha. Ontem, porém, só habitada por tartarugas milenares e esplendidas gaivotas de jade.
Ontem os homens foram brinquedos frágeis. Deuses de filigrana e pés de barro, pequenas libélulas de asas delicadas, perecíveis.
Ontem desenganei-me, chorei e depois ri. Ontem ri e chorei antes de me desenganar. Ontem fui trágica. Ontem fui mágica. Ontem fiz malabarismos com granadas ofensivas e Haraquíri sem punhal. Ontem chorei sem lágrimas, cantei sem voz, gritei em silêncio.
Ontem foi ontem. Hoje, amanhã e depois será, também, ontem.
Maria João Brito de Sousa, in “Diário`s” 1993 - inédito